quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Sejam Bem-Vindos!

Olá! Sejam bem-vindos ao Cemitério Bom Senhor Jesus da Redenção! Perdão, muitos de vocês nunca ouviram falar nele, pelo menos não com esse nome. Sejam bem-vindos ao Cemitério de Santo Amaro, como é muito mais conhecido.

Muitos aqui me conhecem simplesmente como "Anfitrião". Não gosto muito da alcunha, explicarei oportunamente. Mas, terminei por me acostumar. Que mais fazer? Recebi esse apelido porque, há alguns anos, tenho recebido e, quando necessário, acalmado os mortos que vêm para ser enterrados no cemitério. Muitos dizem que sou uma boa alma. Gosto de acreditar que sim, porque, afinal, "alma" já sei que sou.

Sim, estamos bem entendidos. Eu já morri. Faz um bom par de anos. Jamais pensei que teria oportunidade de me comunicar com o mundo dos vivos, mas, a tecnologia, hoje, faz maravilhas! Mas, onde estão meus modos? Perdoem-me. É a excitação. Estava a me apresentar. Meu nome é Epitáfio.

Sei bem. Parece piada, ser recebido por um Epitáfio num cemitério. Posso afirmar que meu nome não é exatamente um motivo de felicidade para mim. Epitáfio da Cruz Barata. Vamos por partes.

Meu pai ainda era menino quando trabalhou para o Doutor Epitácio Pessoa. Naquela época, o doutor era professor da Faculdade de Direito do Recife, já havia participado da constituinte, e meu pai admirou aquele jovem tão estudado. Quando, em 1919, o doutor foi eleito o décimo primeiro presidente do Brasil, meu pai decidiu: seu filho se chamaria Epitácio, para se espelhar no doutor.

Mas, o mundo dá muitas voltas. Eu fui o "terceiro Epitácio", porque dois irmãos se perderam durante a gestação, ainda, e minha irmã não combinava com o nome. Sobrou para mim, que somente nasci em 1925, quando o doutor já não era mais presidente.

No cartório, meu pai anunciou que queria o nome do presidente, Epitácio Pessoa Barata. Barata é o sobrenome da família do meu pai, mas, a combinação soou mais como um desmerecimento à pessoa do doutor. Ele recuou, e introduziu o sobrenome da minha mãe: da Cruz. Devidamente posto em ordem, seria Epitácio da Cruz Barata. Não é a coisa mais linda que já li, mas, desgraça pouca é bobagem.

Não satisfeito com o meu nome desconcertante, o tabelião fez-me o favor de registrar-me como Epitáfio da Cruz Barata. Dizem que foi acidente, mas, o doutor Epitácio não foi o presidente mais popular. É bem provável que o tabelião tenha feito por pura sacanagem, mesmo. Meu pai, analfabeto de pai e mãe, saiu do cartório me chamando de Epitácio, e só descobri meu nome verdadeiro quando, por ajuda do doutor, ele pôde me colocar na escola.

E tenho usado meu nome até hoje. Dando um bom salto na minha vida, chegou um dia em que eu morri. Sim, um enorme salto, concordo. Mas, quero falar do que faço. Por que me chamam Anfitrião? Quando eu morri, fui enterrado no Cemitério de Santo Amaro. Não precisamente "eu", mas, pelo menos, meu corpo o foi. Passei um tempo apegado a ele, mas, como bem repararia Machado de Assis, o corpo foi comido por vermes. Não havia muito a que me apegar.

Ficando no cemitério, reparei que havia muitos outros como eu, que sofreram em estar por lá. Alguns não admitiam estar mortos. Outros haviam morrido depois de enterrados, segundo garantiram. Alguns, ainda juravam matar quem os tinha matado. Um triste cenário. E chegava mais gente todo dia. Como morre gente, no meu Recife!

Aquele cenário era ainda mais desolador, porque cada um parecia viver seu próprio inferno. Bem, não sei se "viver" é o termo mais acertado, mas, creio que você me entendeu. Viviam isolados uns dos demais, e o sofrimento parecia excruciante para quase todos.

Não sei o que me deu, mas, comecei a conversar com eles. Na verdade, acho que foi tédio, mesmo. Ver toda aquela desolação não me alimentava a alma, mas, no princípio, eu também estava mais preocupado com o meu sofrimento. Vivi bem, para a minha geração. Quase sessenta anos. Mas, como diz a música, "todo mundo quer ir pro céu, mas ninguém quer morrer". Convenhamos, morrer e não ir pro céu não é a maior fonte de felicidade e satisfação pessoal.

Mas, conversei com as pessoas. Precisamente, com suas almas. Fui convencendo algumas de que elas eram suas almas, não os corpos. Que deixassem os corpos, porque já estavam perdidos, e buscassem seguir suas vidas... ou suas mortes, que seja, em paz. Que descansassem em paz, como muitas de suas lápides sugeriam.

Aos poucos, fui me tornando uma espécie de liderança, no cemitério. Pode-se dizer que desenvolvi o espírito de liderança que o Santo Amaro precisava ter. Perdoem o trocadilho barato, eu nunca resisto a eles.

E foi assim que começou o meu calvário. O velório é um momento realmente crítico. Alguns espíritos ainda estão adormecidos, mas, os que acompanham seu próprio velório sempre têm uma dose paquidérmica de sofrimento. Quando não sofre pelo sofrimento dos entes amados, sofre por eles não sentirem a perda como o esperado.

Bem, a real é que já vi de tudo, nesses anos. E pretendo compartilhar com você algumas das histórias desse período em que eu tenho sido chamado O Anfitrião de Santo Amaro.

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