terça-feira, 18 de setembro de 2018

Josiclêda!

Hoje, falaremos de Josiclêda. Não que esse seja o nome dela, pois não a irei expor, nem à sua família. Mas, ela tem cara de Josiclêda, e o pseudônimo lhe caiu bem. Resolvido.

Acredito que dizer que ela tem cara de Josiclêda já diz muito sobre ela, né? E a exclamação no título, o que faz ela, lá? Asseguro-lhes, será entendido oportunamente. Gosto muito dessa palavra, "oportunamente". Coloca todas as coisas no seu devido tempo, já perceberam?

Mas, não é dos meus gostos que vim falar. Josiclêda é o assunto. Chega de lenga lenga e enrolação. Vamos a ela.

Josiclêda nasceu no interior. Vem da Zona da Mata, nascida em Catende. Viveu boa parte da vida no campo, trabalhando nas usinas na época de trabalho, e vivia da caridade alheia na época sem trabalho. Afinal, a cana se colhe na época mais quente do ano, e no resto do tempo não tem muito serviço na usina.

Batalhadora, Josiclêda era uma mulher negra como suas antepassadas que exerciam a mesma atividade por força da escravidão. Mas, graças à pesada carga negativa que a sociedade atribui a esse traço fisionômico, por toda vida negou a negritude com veemência. Usou "a favor de si" o cabelo liso que herdara das antepassadas indígenas, para se dizer "branca do cabelo bom".

Seu grande amor de juventude, Aldacir, contribuiu para que Josiclêda contasse com oito filhos para cortar a cana e somar a renda. Enquanto ele era vivo, tinha uma carreira um pouco mais promissora, e chegou a operar o trator da usina. Recebia melhor do que a soma de Josiclêda e dos cinco que já trabalhavam, quando ele morreu de facada numa briga de bar.

Com a falência da usina em que costumavam trabalhar Josiclêda e seus filhos, ela se viu com uma mão na frente e a outra atrás. Tentou fazer como alguns amigos um pouco mais influentes, e arranjar um pedacinho de chão para plantar com os filhos o alimento de toda a família. O pessoal do sindicato chamava de "comodato", mas, ela não entendia esses nomes de bacana. Ela só queria plantar o próprio alimento: um pouco de macaxeira, de inhame, e outros víveres que fizessem parte de sua já sacrificada dieta. Se o chão desse, talvez vendesse o que sobrasse na feira, ou de porta em porta.

Mas, nada feito. Josiclêda não conseguiu nenhuma terra em canto algum.
Então, passou ela cidade de Palmares, onde ela estava a mendigar, uma caminhada do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, mais conhecido como MST. Ela não conhecia do movimento muito mais do que sua fama de baderneiros e invasores, de que os antigos patrões sempre falavam. Mas, ela sabia que era uma trabalhadora sem terra e resolveu ver se eram mesmo os vilões de que sempre se falava.

Os discursos assustaram no começo. Invadir a usina onde ela sempre trabalhara? Isso parecia confirmar a má-fama que ao movimento sempre se atribuía. As invasões sempre a deixavam sem trabalho. Mas, ela já estava sem trabalho, e a terra da usina não estava servindo de nada desde a falência. Josiclêda se encantou com uma coisa: poderia ter seu chão para plantar. Seria certo ocupar a terra dos outros, assim, tomando o que não era seu? Seus pais sempre ensinaram que não.

Mas, o desespero da fome era maior do que seu medo. Fome ela aguentaria passar, como aguentara nos períodos entre safras, quando tinha que mendigar para comer. Mas, fome permanente era algo que ela não desejava para si, muito menos para os filhos. Sabia que isso iria terminar em morte. E o movimento fazia escolas nas invasões! Os seus filhos finalmente iam se letrar, para tentar uma vida melhor. Ela não sabia como seria uma vida melhor. Tirando a dela, a dos usineiros e a de algumas pessoas que ela via quando ia mendigar nas feiras, ela não imaginava como seria. Mas, o discurso do homem em cima do carro de som foi bonito. Ela irremediavelmente queria aquilo para seus filhos.

Decidiu. Josiclêda resolveu se juntar ao movimento, e pegar um pedacinho de terra na usina em que sempre trabalhou. Estava feliz com a resolução. Lá dentro, informaram que não era tão simples assim, e que ela receberia o seu pedaço, mas a partilha consideraria também as famílias que estavam esperando havia mais tempo. Foi um baque, mas, ela não podia negar a justiça que havia nisso. Foi à beira do rio chorar.

Na sua tristeza e desesperança, Josiclêda não prestou muita atenção à sua volta. Não reparou alguns sinais que conhecia, e o rio começava a apresentar. Em meio a seus prantos, Josiclêda adormeceu. O quê? Você quer saber sobre os sinais? Cheia. Era uma época de fortes chuvas, entre outros fenômenos, e o rio estava subindo. Nele, vinham mais galhos do que o habitual, precendendo outros objetos estranhos... Logo, cadeiras, mesas, os poucos pertences de diversas moradas ribeirinhas eram levados pela água doce como se fossem oferenda a Iemanjá. Talvez, porque, originalmente, essa Orixá seja a mãe do rio, na terra onde começou a ser cultuada.

Antes que Josiclêda dispertasse e tomasse conhecimento o que ocorria, as águas que subiam relativamente plácidas para além da margem cresciam em força no leito do rio. Não demorou para que ela fosse alcançada, e, antes que pudesse reagir, ser levada para onde a força da água não pode ser antagonizada.

Ninguém mais soube de Josiclêda. Metade de sua família, ela inclusa, entrou na lista de desaparecidos. A enchente devastou diversos municípios por onde o rio passava. Águas Pretas, Palmares, Catende... o governador prometeu reconstruir tudo. As obras começariam...

Dias depois, em algum canal na cidade do Recife, foi encontrado um corpo com sinais de afogamento.

Sem documentos, foi marcado como indigente, e mandado para sepultamento público aqui em Santo Amaro. Josiclêda chegou atordoada, sem saber muito bem o que lhe ocorrera. Foi preciso algum tempo para ela fechar as lacunas dessa história.

Hoje, Josiclêda não tem notícias dos filhos, e não mais viu o marido, enterrado anos antes em São Benedito do Sul. Seus filhos também não têm notícias dela. Nem os mortos nem os vivos. 

Eu daqui lembro que a barragem necessária para evitar essas enchentes já é promessa de décadas atrás. Tantos políticos já passaram e ninguém evitou essa tragédia.

Josiclêda morreu jovem, antes de chegar aos trinta. A meu ver, de morte matada, como tantos outros que, sabendo ou não, têm seus destinos nas mãos de políticos e de latifundiários.

Daqui do cemitério, não temos muito o que fazer a respeito. Mas, esperamos sempre que os vivos um dia aprendam a votar. Assim, talvez, as pessoas cheguem aqui mais velhas e mais vividas.

A exclamação? A urgência de evitar outras Josiclêdas!

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